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Reportagem

Manifestações da Cultura Popular em Guarulhos

Reportagem tem o objetivo de reconhecer alguns dos principais grupos tradicionais da cultura popular guarulhense e de propagar informações históricas dessa tradição, as heranças de seus antepassados e sua ótica aglutinadora

Por Carla Maio

Segunda maior cidade em número de migrantes nordestinos no país, de acordo com dados do censo do IBGE de 2010, Guarulhos reúne grande variedade de manifestações da Cultura Popular. O processo migratório, que teve início ainda na época do império e se intensificou entre as décadas de 1950 e 1970, por conta da construção da rodovia Presidente Dutra, é responsável por um legado cultural riquíssimo, tanto na diversidade culinária quanto na música, usos e costumes.

De acordo com Alberto Ikeda, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), as expressões culturais de tradição oral, cultura raiz, tradições populares, a cultura tradicional são algumas das nomenclaturas usadas para singularizar um conjunto de saberes distintos da cultura de massa, cultura urbana moderna, erudita ou indígena.

O universo da cultura popular guarulhense, que reflete sobremaneira as histórias das comunidades e os conhecimentos passados entre as gerações, é marcado por fervorosa interação entre as pessoas, determinando de modo muito particular comportamentos coletivos, símbolos e práticas sociais de grupos e indivíduos ligados às crenças, costumes e tradições, destacados na literatura de cordel, na música caipira, no teatro de mamulengo, na dança, na culinária regional, na religião, entre outras manifestações.

O ritmo marcado dos grupos de folias de Reis, a fé dos devotos de Nossa Senhora que saem em romaria até o Santuário em Bonsucesso, o ato de carpir a terra que cura, os farricocos com tochas encenando a paixão de Cristo no calçadão da Rua Dom Pedro, os artistas da música sertaneja raiz que se espalham por diferentes regiões da cidade, a marcação certeira dos passos dos grupos de Catira, os poetas ligados à tradição do cordel, a produção do artesanato local são algumas das tradições da Cultura Popular que se concretizam em inúmeras perspectivas artísticas e que encontram força na participação de seus herdeiros por muitas gerações.

E nem mesmo a pandemia impediu que a tradição da cultura popular dos municípios paulistas pudesse ser referendada. A culinária guarulhense do Recanto Quiguiriçá, culinária tradicional de terreiro de umbanda com suas tradicionais paçocas de amendoim e de carne seca, as danças e músicas características dos grupos de Folia de Reis e suas homenagens aos Três Reis Magos, a confecção de artigos artesanais feitos com couro e madeira e as tradições indígenas são algumas das expressões artísticas apresentadas na série de episódios do Projeto Revelando SP Online, edição 2020. A série é parte do evento de economia criativa e cultura tradicional realizado pelo Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, para celebrar e valorizar a cultura popular e tradicional de São Paulo. Os vídeos do Projeto Revelando SP Online com a programação do Cultura em Casa em Guarulhos e em outros municípios paulistas estão disponíveis na plataforma: www.culturaemcasa.com.br.

Com o objetivo de reconhecer alguns dos principais grupos tradicionais da cultura popular guarulhense e de propagar informações históricas dessa tradição, as heranças de seus antepassados e sua ótica aglutinadora, essa reportagem não se esgota nas manifestações que destaca, antes, aponta para a necessidade de sistematizar e dar visibilidade a ela, tornando a riqueza de grupos e artistas dessa vertente ao alcance de todos. Mais que um desafio, esse trabalho é uma construção coletiva que se materializa em algumas dessas ações e que vão muito além de aspectos estéticos e artísticos. Vamos a elas:

Procissão do Fogaréu

Foto: Rodrigo Marcelo

A grande movimentação de pessoas em frente à Igreja Nossa Senhora da Conceição na noite da quinta-feira santa indica o fim da Missa da Ceia do Senhor e o início da Procissão do Fogaréu. Da Praça Tereza Cristina, onde ficam o marco zero da cidade e a Igreja Matriz, até a Capela Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, os fiéis assistem encantados a um espetáculo marcado por cores, luzes, música, teatralidade e fé.

Ao longo de todo o trajeto, pouco mais de três quilômetros, os fiéis acompanham as performances de artistas da cidade, que encenam uma das passagens bíblicas mais tocantes, a prisão de Jesus Cristo pelos soldados romanos. Comovente, a atuação dos Farricocos encapuzados que carregavam tochas impressiona o público, misturando ao imaginário cristão nuances de fé cênica de absoluta magia.

Mamulengos

Foto: Divulgação/Cia Los Xerebas

O Mamulengo é a forma popular e tradicional do teatro de bonecos no Brasil. Na região nordeste do país, a tradição dos mamulengos é conhecida como a arte do Brincante, e as brincadeiras e o ato de brincar têm grande importância para os mamulengueiros.

Em Guarulhos, a tradição dos mamulengos inspirou o trabalho da Cia Los Xerebas. Em 2012, O Espalha-Lixo e Isso é Lixo, espetáculos embrionários de teatro de bonecos montado pela trupe, fincou raízes nas cores e nas xiitas de bonecos adaptados e customizados para atender à tradição. Isso instigou ainda mais a curiosidade de André Bizorão, um dos idealizadores da Cia Los Xerebas, que se embrenhou em aprender cada vez mais sobre o teatro de animação. Em 2014, o mamulengo entrou de vez no universo da companhia com a Trilogia Xerebística e a exibição de três espetáculos: Ave; Inês, chegou sua Vez e Emancebados. Adaptados da dramaturgia mundial para a comédia brasileira, os espetáculos exigiam a participação de muitos personagens.

E foi a partir dessa necessidade que a trupe decidiu confeccionar os bonecos, que contou com extensa pesquisa e de adaptações para a realidade da companhia. Dessa forma, o mulungu, madeira de que são feitos os tradicionais bonecos pernambucanos, e o acabamento à base de massa corrida deram lugar ao uso de materiais recicláveis. A estética dos bonecos de luva, como também são conhecidos os mamulengos, foi somada à técnica de manipulação dos bonecos de varas e muita criatividade, o que permitiu que um único manipulador pudesse manusear três bonecos ao mesmo tempo.

Favoritos da Catira

Foto: Divulgação/Favoritos da Catira

Formado no final da década de 70, o grupo Favoritos da Catira é formado por homens e mulheres engajados em preservar a cultura caipira e passar a sabedoria cabocla para a terceira geração de integrantes. Em seus cantos, poemas, ponteios, acordes, gestos e batidas das mãos e dos pés, o grupo leva seus apreciadores a uma viagem no tempo e uma abstração de simbolismos, significados e referências inspirados e ainda mantidos no universo da autêntica cultura raiz.

A catira também é conhecida como cateretê, um tipo de dança rural da época colonial, que possui influências das culturas indígenas, africanas e europeias. Entre as temáticas das letras há histórias caipiras, brincadeiras, causos com uma moral cabocla. A dança também se alterna entre coreografias uniformes e individuais dos catireiros. Durante o som de modas de viola, a dança acelera e desacelera e para com a cantoria.

Folias de Reis

Foto: Rodrigo Marcelo

Ao lado de festejos populares como Congados, Império do Divino, Reinado do Rosário e Pastorinhas, os grupos guarulhenses de Folia de Reis Estrela Dalva, Estrela Guia, Os Mensageiros dos Santos Reis e Vila Carmela representam o caráter profano-religioso dessa manifestação ao combinar as comemorações do nascimento de Jesus com várias festividades.

Festejo de origem portuguesa ligado às comemorações do culto católico do Natal, a Folia de Reis chegou ao Brasil ainda nos primórdios da formação da identidade cultural brasileira. Hoje, ela está amplamente disseminada nas manifestações folclóricas de muitas regiões do país

A tradição de visitação das casas, que dura do final de dezembro até o dia de Reis, é feita por grupos organizados, muitos dos quais motivados por propósitos sociais e filantrópicos. Cada grupo é composto por músicos tocando instrumentos, em sua maioria de confecção caseira e artesanal, como tambores, reco-reco, flauta e rabeca (espécie de violino rústico), além da tradicional viola caipira e do acordeão, também conhecida em certas regiões como sanfona, gaita ou pé-de-bode.

Orquestra de Violeiros Coração da Viola

Foto: Rodrigo Marcelo

Há 40 anos, a Orquestra de Violeiros Coração da Viola encanta o público com espetáculos riquíssimos, nos quais predominam canções saudosas e histórias incríveis. Patrimônio imaterial da cultura guarulhense, a Orquestra Coração da Viola também é responsável por manter viva a cultura tradicional caipira, inserindo a cidade no eixo cultural nacional ao estabelecer laços de representatividade no tocante à cultura regional que reverbera para outras regiões do país. A Orquestra resiste num trabalho de constante renovação, uma tradição que, a cada geração, se reconstrói e marca a identidade cultural do munícipio.

Recentemente, a Orquestra de Violeiros Coração da Viola apresentou série documental em três episódios, por meio de projeto aprovado pelo Fundo Municipal de Cultura de Guarulhos (FunCultura) e realizada com recursos federais da Lei Aldir Blanc, Os episódios mostram o papel fundamental da orquestra de Violeiros para a preservação da memória e do patrimônio da cultura imaterial da cidade de Guarulhos.

Mostra de Teatro de Rua de Guarulhos

Foto: Rodrigo Maia/Movimento Cabuçu

Protagonismo social, cultural e ambiental são a marca registrada da Mostra de Teatro de Rua de Guarulhos, manifestação idealizada em 2009 pelo poeta, ator e artista visual Oziel Souza e pelo biólogo Rodrigo Maia, no contexto do Movimento Cabuçu. Desde que surgiu, busca ampliar a consciência ambiental do entorno do Parque Cantareira, promovendo a circulação de atividades culturais nos espaços públicos e nas ruas de diferentes regiões da cidade.

Em defesa da arte e do meio ambiente, a Mostra lida com diversos desafios encontrados para sua produção e conta com uma equipe bastante engajada em seu processo de construção. Dentre suas principais conquistas do Movimento-Cabuçu estão a criação da Área de Proteção Ambiental Cabuçu Tanque-Grande pela lei municipal 6.798, de 28 de dezembro de 2010, e os estudos para criação da Área de Proteção Ambiental Capelinha Água Azul.

Ao ganhar as ruas de Guarulhos, a Mostra de Teatro de Rua derruba as barreiras físicas e imaginárias entre a arte e público. Durante sua realização, entre os meses de outubro e novembro, os artistas costumam colorir as ruas e bordar sorrisos nos rostos das pessoas, que abandonam o sufoco da rotina por momentos de puro deleite e fruição.

Em dezembro de 2020, a 12ª Mostra de Teatro de Rua de Guarulhos prestou homenagem ao escritor Castelo Hanssen, personalidade que acompanhou toda a trajetória e movimento de Oziel Souza. Nesta edição, realizada em formato digital, o que permitiu maior abrangência na participação de coletivos e acesso aos trabalhos apresentados, foram mais de 50 espetáculos, de oito estados brasileiros, reunindo mais de 100 artistas, entre mestres e aprendizes.

Bosco Maciel e a Casa dos Cordéis

Foto: Divulgação/Bosco Maciel

Na linha melódica do movimento armorial de Ariano Suassuna, o poeta cordelista Bosco Maciel possui um repertório com poesias e músicas que traduzem a vida de homens e mulheres do sertão nordestino. Bosco Maciel nasceu em Cajazeiras, no sertão da Paraíba, em março de 1950 . Em 1970, viajou para São Paulo e, em 1974, veio morar em Guarulhos. Durante sua vida, nunca esqueceu de sua origem, centrando suas pesquisas nas figuras pitorescas do sertão como os ‘emboladores de feira’, os ‘cegos cantadores’, as ‘benzedeiras’, os ‘vaqueiros’, e outros personagens que compõem a cultura popular de tradição nordestina. Em 2010 realizou a primeira ‘Procissão do Fogaréu em Guarulhos, realizada até hoje na quinta-feira da Paixão, na Semana Santa. No mesmo ano recebeu o título de “Cidadão Guarulhense”, ofertado pela Câmara municipal de Guarulhos, como reconhecimento por serviços prestados à cidade na área da cultura popular.

Em 2007, criou a Casa dos Cordéis, entidade voltada à valorização da cultura popular do Brasil, com foco na cultura nordestina. No auge de suas atividades e ao longo de seus 11 anos de funcionamento no casarão da Rua Torres de Tibagy, no bairro Gopoúva, a entidade chegou a receber mais de 450 artistas populares de todo o Brasil com a oferta de rica programação semanal com shows musicais, saraus literários, lançamento de livros, peças teatrais, entre outras atividades ligadas à cultura popular.

Ao longo de sua trajetória de mais de 30 anos de intensa atividade cultural desenvolvida em Guarulhos, Bosco Maciel coletou vasto material, resultado de inúmeras oficinas, momentos de criação de figurinos, bonecos, artefatos, muitos livros, instalações e objetos, um arsenal histórico que compõe o acervo da Casa dos Cordéis e que inspirou a mostra O Fazedor de Imagens, na Casa Amarela, na Praça IV Centenário, no centro, em 2019.

Comemorações de Nossa Senhora de Bonsucesso

275º Missa Festa da Carpição – 01/08/2016/ Foto: José Luiz/PMG

Fé, arte e tradição. Durante as celebrações em louvor a Nossa Senhora de Bonsucesso, nos meses de julho e agosto, diversas manifestações sacro-artísticas movimentam o entorno de uma das mais periféricas regiões da cidade. A Festa em louvor à padroeira é uma das mais antigas festas sacras realizadas em território nacional, reunindo um público com diferentes idades, famílias inteiras que se deslocaram de todas as regiões da cidade e de outros municípios para manifestar sua fé e celebrar a arte. A expectativa é que, em 2021, seja celebrada sua 280ª edição.

Na festa, os devotos encontram ainda artesanato, delícias culinárias e fortalecem vínculos artístico-culturais por meio da oferta de atividades de diferentes linguagens. A participação de grupos e artistas da cidade também enfatizam a importância de agregar e reafirmar valores tradicionais.

Em mais de dois séculos de tradição, a descida do mastro e o aniversário da Paróquia, que marcaram o início das celebrações no mês de julho e se manifestaram na realização da Noite das Artes e da Festa da Carpição, demonstram a renovação da fé dos devotos e reafirmam a continuidade de tais tradições.

A Festa de Bonsucesso também integra eventos cativos, como a carreata organizada pela Diocese de Guarulhos, a motorromaria com os motociclistas da cidade e a cavalgada da Associação dos Cavaleiros de Guarulhos (ACG), iniciativas responsáveis por agregar valores culturais de diferentes grupos e permitir sua perpetuação. O evento também congrega a Romaria a Nossa Senhora de Bonsucesso, que reúne romeiros, artistas, músicos e devotos que partem da Capela Nossa Senhora Aparecida, no Inocoop, em direção ao Santuário em Bonsucesso, marcando com muita alegria e animação o início da tradicional festa em louvor à padroeira. A Festa também recebe atrações musicais no Rancho dos Romeiros, espaço em que a viola caipira, as comidas típicas e a chegada dos tropeiros mantêm viva a cultura popular sertaneja.

2 comentários sobre “Manifestações da Cultura Popular em Guarulhos

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