O Rhuan faz da música ferramenta social e política para combater o racismo
Em entrevista para a Guarulhos Cultural, músico guarulhense fala de seu novo trabalho, da expectativa de aprofundar linguagens relacionadas às temáticas das músicas do EP Resgate, de sua família, compreensão sobre reparação histórica, luta negra, resistência e combate
Por Carla Maio
Contar a história a partir da ótica do povo preto, sua força, luta por liberdade e resistência. No último dia 20 de novembro, data em que reverenciamos a memória de Zumbi dos Palmares no Dia da Consciência Negra, o músico Rhuan lançou o EP “Resgate”, trabalho autoral que conta com as músicas Oposição, Baby Sou Soul e P.A.Z. A data marcou ainda o lançamento do videoclipe de Oposição, disponível no canal do músico no YouTube.
Segundo Rhuan, a data não foi escolhida por acaso: “Esse trabalho nasce com o intuito de reparação histórica que necessita partir de nós para nós. É necessário entendermos nossa força, nossos caminhos”. O EP conta com sonoridades de origem preta como o blues e o gospel, entre outros.
Com o intuito de contar a história como ela deve ser contada sem que o povo preto se torne seu próprio vilão, Oposição traz uma mensagem declarada contra o racismo a partir da referência da luta negra, resistência e combate. “Oposição surgiu da necessidade de ouvir a história de outra forma. Tudo o que sabemos sobre escravidão, aprendemos na escola, de forma superficial, sem aprofundar questões importantes e que sempre deixavam dúvidas sobre sua veracidade. Durante a adolescência, tinha dificuldade de aceitar como verdade, levou muito tempo para eu me aceitar enquanto negro e essa aceitação é muito recente, o entendimento do que meus antepassados sofreram, então, Oposição nasce a partir da necessidade de contar a história a partir do nosso ponto de vista”, explica.
Alma lavada
O EP Resgate é composto por músicas antigas, que não foram escritas agora, e que estavam guardadas para um lançamento especial, no momento certo. Oposição fala de um momento que antecede à escravidão. Baby Sou Soul representa a liberdade em um momento após a escravidão, quando os negros estão percorrendo o caminho da reconstrução. P.A.Z. tem uma vibe muito boa, que caiu no gosto de quem a escutou.
“O povo preto foi tirado de sua terra e trazido para o Brasil em um contexto de escravidão. Após a abolição, eles não sabiam muito bem o que fazer, não havia educação, emprego, uma forma muito forte como o povo preto ressurgiu das cinzas como uma Fenix e resistiu. E isso é Baby Sou Soul, somos alma, somos livres. Além disso, traz essa pegada do blues, dos ritmos assim como a PAZ, uma pegada mais Gospel”.
Satisfeito com o resultado alcançado com a produção musical de Arielly Porto no Studio Somás, Rhuan conta que foi uma experiência ímpar. “A Arielly já produziu trabalhos incríveis e é uma das referências em produção na cidade. Quando conversei com a ela e lhe disse que queria uma onda mais gospel, ela entendeu meu desejo para o projeto e, por isso, entrou com o timbre do piano, muito característico nesse gênero. Essa escolha faz referência direta ao gospel preto, com origem no Mississipi onde, durante a colheita de algodão, as pessoas acreditavam que, se elevassem seu canto a Deus, em adoração, de alguma forma elas seriam salvas. Audaciosos, muitos deles fingiam estar ligados à religião cristã para poderem cantar a música gospel”, vibra Rhuan.
Ele explica que Oposição é uma regravação. Sua estética e a força da letra pediram imagens e, assim, surgiu o projeto audiovisual do Social Media Davi Maximo, que cuidou de tudo, desde a filmagem à edição final. “Depois que Davi ouviu as músicas do EP, achou o trabalho massa, e sugeriu a criação do videoclipe. A ideia, à princípio, era fazer V-losers de 40 segundos para cada música. No dia em que nos encontramos no Sakamoto, local onde fizemos as imagens, o Davi decidiu gravar imagens para fazer Oposição inteira. É possível que, em breve, as outras músicas também tenham videoclipe. Gostamos muito da estética dos eucaliptos, não imaginávamos que ficaria tão bom”.
No canal do músico no YouTube ainda é possível encontrar trabalhos produzidos em casa, em um quartinho improvisado, quatro ou cinco clipes que o próprio Rhuan editou.
Reparação histórica
A busca de Rhuan pelo entendimento de sua nossa força lhe permitiu trilhar caminhos por meio da música. “Por muito tempo, eu me senti fraco. Tinha vergonha do meu cabelo, da minha cor, do meu nariz, da minha boca. Minha geração foi muito bombardeada pelo estereótipo branco”. Essa constatação foi registrada por Rhuan nos versos: Ai quem me dera Leandro, eu já ouvi isso Emicida, eu não relaxava nem com guanidina, era difícil me impor, toda vez eu tremia, eu odiava minha cor, a capricho que o diga. “A música que me salvou, mas ver outros pretos falando sobre questões raciais, nossa ancestralidade, somos reis e rainhas, me ajudou muito nesse processo, então, eu quero devolver isso de alguma forma, para que minhas filhas possam, um dia, me ver falando da minha cor com orgulho, que elas e seus amigos possam crescer entendendo sua força e a de seus ancestrais”.
Para o músico, a compreensão da dívida histórica que o país tem com os negros pode ajudar o movimento a se fortalecer. “A reparação histórica tem a ver com a devolução da nossa autoestima, do nosso livre arbítrio, para que a gente pare de sentir medo, e isso não dá para esperar de ninguém, tem que vir de nós mesmos, da ajuda que podemos dar um ao outro, de quem tem dúvida ou receio, que a gente se fortalece para que, a partir, daí, reivindicar nosso espaço e busque de volta o que é nosso”.
A música sempre foi uma ferramenta social e política. Para Rhuan, seria um erro se ela não o fosse agora. Por todas as partes, é possível ver personalidades levantando a bandeira da luta contra o racismo e promovendo ações para o exercício diário da empatia, do colocar-se no lugar do outro. “Sinto-me privilegiado de viver em uma geração tão forte, com uma opinião tão ativa, e o que me fez optar por esse caminho artístico foi o fato de eu viver isso diariamente. Eu poderia muito bem falar de outros assuntos, mas seria muito hipócrita ou irresponsável da minha parte não direcionar meu trabalho para esse caminho. A partir do momento em que eu ainda enfrento olhares tortos, que minhas filhas já sofrem isso na pele pelo cabelo ser diferente, sua cor, seu pai preto, então, isso faz com que eu aborde essas questões”.
Rhuan é primo de Vanuzia Santos, a primeira indígena a ser vacinada no Brasil. Hoje, faz parte do movimento Kaimbé e, por meio de seus primos, teve a oportunidade de se aproximar de uma parte de sua família e entender questões que envolvem os conflitos indígenas.
Um sonhador
Da esquerda para a direita: Tico, Rhuan, Zé Lima, Luiz e Naldo Da esqueda para a direita: Rhuan, André, Luiz e Naldo
Rhuan nasceu em Guarulhos, no Hospital Menino Jesus. Tem 28 anos, atualmente mora no Jardim Presidente Dutra, depois de 25 anos vivendo no bairro Inocoop, onde cresceu, se formou, fez amigos. Concluiu os estudou na EE Prefeito Antônio Prátici. Rhuan conta que teve experiência engrandecedora e intensa com as aulas de violão e cavaquinho com Luiz Macambira, conhecido como Luiz 7 Cordas, personagem bastante conhecida na região, remanescente do Bando de Macambira, grupo de serestas cearense. Ao lado de seu mestre, encontrou amizade sincera, malandragem da sobrevivência e a verdadeira boêmia.
“O que me inspirou a ser músico foram as pessoas que estavam ao meu redor, o Luiz Macambira, que é meu pai na música, sou grato a ele a tudo que sei hoje, meu falecido irmão, que foi vítima de bala perdida, meu pais que tem muito orgulho de me ver fazendo música, me incentivaram a continuar e a viver disso”.
Rhuan cresceu na casa de nordestinos, onde ouviam um pouco de tudo, forro, música brasileira, rap, pagode, reggae. “Vivemos muita coisa lá em casa, e hoje em dia eu continuo com esse hábito, gosto muito de colocar disco de tudo quanto é estilo para as meninas ouvir, pego a vitrola e uma hora estamos ouvindo Bee Gees, outra hora Paralamas, de repente Djavan, outra vez Nei Matogrosso, e com os amigos também consumimos de tudo um pouco”.
Tímido, confessa que sempre teve dificuldade para se comunicar e se impor. Aos 14 anos, sua irmã o incentivou a aprender violão, uma forma de perder a timidez e conquistar as garotas. Não vive de música; trabalha com edição de vídeos no Premier e Photoshop. Com os métodos de ensino aos quais teve acesso, aprendeu a ensinar e tocou em bares da cidade.
“Intenso, sou um sonhador, um artista que quer mostrar sua essência e deixar O Rhuan falar. Costumo dizer que gosto muito de sonhar. Hoje, diferente de antigamente, sou um sonhador com os pés no chão. Agora sonho para que minhas filhas tenham uma condição melhor, uma situação melhor, agradável. Sou muito família”.
Em relação ao que tem em mente para o próximo ano, o músico diz que pretende trabalhar em cima do EP Resgate e proliferar a mensagem das músicas. “Tenho a intenção de fazer alguns experimentos com instrumentos orgânicos, teatro, tem bastante coisa para acontecer, e já tem pelo menos mais dois EPs na fila, um deles posso adiantar que vai apresentar o motivo pelo qual eu acordo todos os dias, pelo qual eu e minha esposa Pamela lutamos, minhas filhas Isabele e Alice, vou mostrar um pouco desse meu lado pai, esposo no próximo trabalho”.