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Entrevista

Compositor guarulhense cria obra em homenagem a Guarulhos

Anoitece na cidade, de Sergio Leal, foi composta tomando como base sons de diferentes paisagens sonoras da cidade

O guarulhense Sergio Leal, de 44 anos, comemora a execução de Anoitece na cidade pela Orquestra Gru Sinfônica, sob regência do maestro Victor Hugo Toro, durante concerto digital da série Novos Talentos e Descobertas da Temporada 2021 das orquestras de Guarulhos. A peça de Leal é uma das quatro obras que integram o espetáculo Gru460, com estreias em homenagem à cidade.

A criação e execução da obra pela orquestra profissional da cidade é parte de projeto idealizado por Sergio Leal, aprovado pelo Fundo Municipal de Cultura de Guarulhos (FunCultura), realizado com recursos da Lei Aldir Blanc. Anoitece na cidade foi composta tomando como base sons de diferentes paisagens sonoras da cidade de Guarulhos.

De acordo com Leal, ter uma obra apresentada por uma orquestra é o momento de maior realização para um compositor. Pelo fato de ser natural de Guarulhos e sempre ter morado no município, a sensação de realização adquire um valor ainda maior. Sergio foi estudante de música no Conservatório de Guarulhos entre o final dos anos de 1990 e o início dos anos 2000, período em que teve uma participação bastante ativa na entidade. “O tamanho da expectativa e da felicidade de ter minha obra Anoitece na cidade estreada pela Orquestra Gru Sinfônica é imenso”, vibra Leal.

Em entrevista para a Guarulhos Cultural, Sergio Leal fala sobre a composição, das expectativas, inspirações, das diferentes seções nas quais ela se divide, do modo como se relaciona com a cidade e os acontecimentos, uma homenagem tocante que também se estende a um grande amigo, vítima da Covid-19.

Guarulhos Cultural: Você foi aluno do Conservatório Municipal de Guarulhos, conte-nos como foi esse percurso ?

Sergio Leal: No período em que fui estudante de música no Conservatório de Guarulhos entre o final dos anos de 1990 e o início dos anos 2000, vivi anos em que o Conservatório passou por grandes dificuldades, correndo, inclusive, o risco de ser fechado. Devido ao meu entusiasmo com a instituição, tive, como estudante, uma participação bastante ativa, não somente no campo estritamente musical, mas em termos políticos, tendo formado e liderado uma comissão de alunos que conseguiu uma assembleia com o Secretário de Cultura da época para apresentar-lhe uma carta de sugestões de melhorias para o Conservatório, pois acreditávamos que a instituição tinha potencial para assumir um papel proeminente na formação e no desenvolvimento de uma vida musical na cidade à altura da importância que Guarulhos já tinha no cenário nacional. Entre as reivindicações contidas na carta, solicitávamos a criação de uma orquestra profissional e outros corpos estáveis vinculados ao Conservatório.

GC: Fale sobre sua primeira composição:

Sergio Leal: A primeira composição de minha autoria que ouvi foi ainda na minha fase no Conservatório: um duo para clarinetes que o professor Antônio Inácio teve a generosidade de me incentivar e tocar junto comigo em uma aula do instrumento. Posteriormente, fui para o Instituto de Artes da UNESP cursar o bacharelado em Composição e Regência. Porém, mantive uma forte ligação com o professor e regente Celso Franchini que, além de ter sido meu professor de teoria no Conservatório também se tornou meu professor de viola. Além disso, e mais importante, Celso Franchini encomendou e estreou a primeira obra de minha autoria a ser interpretada por uma orquestra: A Pequena Suíte da Minha Terra, composta e estreada no ano de 2005 pela Camerata Paulista.

GC: Fale da oportunidade de ter uma de suas obras executadas por uma orquestra:

Sergio Leal: Não obstante o intervalo de dezesseis anos que as separa, a Pequena Suíte da Minha Terra, composta para a Camerata Paulista, e a obra Anoitece na cidade, composta para a Orquestra Gru Sinfônica, guardam uma relação entre si: ambas foram dedicadas à e tendo como inspiração a cidade de Guarulhos.

Portanto, somando o meu histórico como cidadão guarulhense, todas as memórias e ligações afetivas que mantenho com a cidade, a minha passagem pelo Conservatório de Guarulhos e constatando, atualmente, a realização do projeto da edificação de uma cultura musical ativa na cidade – que, ainda que tenha ocorrido posteriormente à minha passagem pelo Conservatório, de alguma forma sonhei com isso e procurei fornecer a minha contribuição para a sua realização na época –, e que agora o vejo solidificado nas duas orquestras da cidade, é que posso dizer o tamanho da expectativa e da felicidade de ter minha obra Anoitece na cidade estreada pela Orquestra Gru Sinfônica.

GC: Onde você buscou inspirações para compor Anoitece na cidade?

Sergio Leal: Anoitece na cidade foi composta tomando como base sons de diferentes paisagens sonoras da cidade de Guarulhos. Paisagem sonora é um conceito que foi popularizado pelo compositor e educador musical canadense Raymond Murray Schafer. Refere-se ao conjunto de sons que compõem um ambiente qualquer, podendo ser de um pequeno local, como o interior de nossas casas, ou espaços maiores, como o de uma floresta, uma região ou, como neste caso, de uma cidade. Na obra, paisagens sonoras e paisagens visuais reais e imaginárias da cidade de Guarulhos são sugeridas. No entanto, não houve a intenção de que os sons da composição retratassem literalmente os sons das paisagens sonoras. Trata-se de uma proposta de criar um clima, por meio do discurso musical, que envolva o ouvinte no cenário sugerido, sem que isto esteja vinculado a uma descrição.

A obra é dividida em quatro seções, que se sucedem ininterruptamente. No todo, sugere a passagem do tempo em quatro momentos diferentes do final de um dia, desde o entardecer até a madrugada, em quatro distintos locais da cidade. A primeira seção sugere uma revoada de pássaros que retornam para os seus lares em um bosque da cidade ao entardecer. A segunda seção retrata o caos e o barulho de um congestionamento em uma importante avenida nas proximidades do centro da cidade, no início da noite. A terceira seção está dividida em duas partes e procura sugerir o clima de empolgação de uma agitada noite de sexta-feira na cidade.

Na quarta e última seção estamos no centro da cidade, passando pela Igreja Matriz. Uma fria, enevoada e silenciosa madrugada de outono recai sobre a cidade. Conforme nos afastamos, descendo a Ladeira Campo Sales, chegando à Avenida Guarulhos e, ao adentrarmos aos bairros, o som das badaladas do sino da igreja vai ficando cada vez mais distante. No alto, a lua faz uma breve aparição, mas logo é engolfada definitivamente pela névoa.

GC: De que modo Anoitece na cidade homenageia Guarulhos?

Sergio Leal: Dando vida ao cotidiano e aos sons cotidianos da cidade, os sons que todos ouvimos no dia a dia, alguns dos sons que fazem parte da vida da nossa cidade. É a cidade retratada em alguns de seus lados. Os sons que os guarulhenses, como eu, ouvem no dia a dia. Pois é no cotidiano que está a essência de nossas vidas. A vida transcorre no comum. Muitas vezes nos desapercebemos daquilo que é corriqueiro, pois ele sempre está ali, ao nosso lado. Mas, o comum é o que temos de mais importante e a arte tem o poder de jogar luz ou, no caso da música, fazer ouvir o que nos escapa na maior parte do tempo. Minha homenagem à cidade de Guarulhos se faz por meio de uma tentativa de ressacralização do seu cotidiano.

GC: Como a cidade foi idealizada e como você traduziu isso em música?

Sergio Leal: Procurei trazer à tona sons e imagens, ambos sugeridos por sons que, além de se referirem a cenários e situações que pudessem ter algum significado para todo e qualquer (ou, pelo menos, para muitos) cidadão de Guarulhos, ao mesmo tempo apresentam conexões, significados e sentidos bastante profundos em minha própria vida.

Nasci e cresci nesta cidade. Cada rua que ando, cada paisagem que avisto, cada som que ouço, me despertam na memória alguma situação vivida, seja dos meus primeiros dias de infância, quanto na adolescência e juventude. Lembram-me meus familiares, meus amigos, as emoções, que vivi, as esperanças que nutri, as pessoas queridas que perdi. E essas memórias me afloram espontaneamente, pois, de tão enraizadas na teia da minha vida, são inseparáveis desta cidade. Guarulhos foi o cenário de todas essas memórias.

Nas ruas onde muitos, apressados, apenas passam, eu vejo, ouço, intuo. Cada uma delas me traz memórias. Cada uma delas leva a algo que é, essencial e profundamente, meu.

É isso que aparece na primeira seção, quando dou vozes aos pássaros que ouço na cidade. Bem-te-vis, periquitos, sanhaços, sabiás-laranjeira e outros que, com seus cantos, ainda que apenas delineados, são, também, as minhas várias vozes. Eles são os vários pássaros que, além das lembranças do passado – de uma Guarulhos que já se transformou e virou outra Guarulhos, a de hoje –, são também os mesmos pássaros que em meu cotidiano, diariamente, me silencio para escutar nas árvores, nos céus e nas antenas de meu bairro e que, também, comumente têm aparecido em minhas composições.

O congestionamento, sugerido na segunda seção, é um retrato do crescimento que, ainda que nocivo por conta do peso que o progresso traz consigo, é parte inseparável de nossa cidade e não poderia ficar de fora. Ele também evoca as já longínquas memórias da Vila Endres, o bairro em que eu morava na década de 1980, que, no horário de pico do final da tarde, ficava inundado de veículos cujos ruídos invadiam diretamente a minha casa.

O cenário agitado da noite da cidade remete à atualidade de Guarulhos, com seus múltiplos bares e atrações, particularmente, mas não somente, nos arredores da Avenida Paulo Faccini. Não obstante, no fundo traz à tona os anos da minha infância, quando minha avó morava no centro da cidade, próximo ao prédio da Universidade de Guarulhos. De lá eu via as luzes da noite no centro da cidade e ficava encantado com os sons de festas e os agitados bailes e discotecas que fervilhavam com os hits da disco music naqueles inícios da década de 1980. Eu mal podia soltar das mãos de minha mãe naqueles tempos, haja vista a minha idade, mas eu sentia algo muito vigoroso (ainda que eu não soubesse explicar o que era) em relação àquele cenário quando via meus tios e outros jovens indo e vindo das noitadas.

A última seção remete a muito mais relações entre a minha vida, as minhas escolhas e acontecimentos. A Igreja Matriz, representada na música pelo som do sino, é, acima de tudo, o ponto de origem da cidade de Guarulhos. Ela teve um significado bastante importante em minha infância, pois minha mãe, intensamente católica, sempre entrava naquela igreja, quando íamos ao centro. Sua fé era algo muito bonito e profundo e guardo comigo a maneira respeitosa com a qual ela me apresentava as imagens dos santos e do Cristo. Além disso, a Igreja sempre foi o ponto de referência, de onde ir e vir no centro da cidade. E, ainda, os seus sinos dominavam a região, como eu podia ouvir da casa da minha avó. Anos depois, no início da juventude, os entornos da Igreja também foram cenário para muitas noites passadas em claro com meus amigos nos bares que ali funcionavam na metade da década de 1990. A última seção também faz alusão ao silêncio, que tem sido um elemento importante na minha obra.

E, não menos importante, ao lado das alusões acima referidas, a última seção da obra presta uma homenagem a um grande amigo que, como muitos guarulhenses e cidadãos de todas as demais cidades brasileiras e do mundo, faleceu em decorrência da pandemia de Covid que nos assola neste momento. Uma vida, um jovem, cheio de sonhos e projetos que foram interrompidos, se foi. Poderia ter ocorrido com qualquer um de nós que ainda temos o maior presente de todos: a vida. O silêncio, o vazio e o som do sino que, gradualmente se estingue, também foram empregados com a intenção de honrar a sua memória e agradecer por sua passagem por esta vida, que foi interrompida no período em que eu compunha esta obra.

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