Tradutor-intérprete de Libras divide a cena com os artistas do Festival Arrastão Cultural
Em entrevista para o Guarulhos Cultural, o tradutor-intérprete Marcelo Guti fala sobre sua profissão e sua estreita relação com a arte
Por Carla Maio
Quem assiste encantado aos episódios do 9° Festival Arrastão Cultural, que no último sábado (27) exibiu seu terceiro programa com a participação dos artistas Baobá e banda e Warley Noua, não deixa de notar o trabalho de tradução em Libras feito pelo tradutor-intérprete Marcelo Guti.
Contratado pela organização do festival para a cobertura em Libras dos cinco episódios do evento, Marcelo tem dado um show à parte, com uma tradução bastante envolvente, não apenas dos textos falados, mas sobretudo das músicas apresentadas pelos grupos e artistas convidados.
Marcelo de Brito Silva, conhecido no meio artístico como Marcelo Guti, atua na comunidade surda desde 2008. Ele tem 36 anos, é coach de formação, paulistano e mora em Guarulhos desde 1991, na região da Vila Galvão. Seu canal no YouTube possui mais de 2 milhões de visualizações com vídeos acessíveis à comunidade surda em Libras. Desde maio de 2015, ele é intérprete dos stand-ups do ator Sérgio Malandro por todo o Brasil e pioneiro em colocar músicas em Libras no SBT, nos programas da Teleton. Até pouco tempo antes da pandemia, ele mantinha o programa DiverCidade, na TV Guarulhos, onde ele e seu esposo, Wislley Pablo, abordavam temas culturais, o único com interpretação em Libras.
Marcelo Guti conta que os visitantes ficam encantados com o conteúdo diversificado disponível em seu canal no YouTube, com músicas de gêneros variados, tudo muito bem organizado em playlists separadas por temas: músicas lentas, gospel, sertanejas, axé, funk, umbanda e candomblé, programas de TV, entre outros.
O Guarulhos Cultural conversou com Marcelo Guti sobre sua fantástica trajetória no universo da tradução e revelou um profissional extremamente dedicado e apaixonado pelo que faz. Acompanhe a entrevista e apaixone-se você também por essa história.
O corpo mostra o ritmo, as mãos mostram as palavras e o rosto mostra o sentimento
Guarulhos Cultural – Qual foi o elemento diferencial no seu percurso formativo e que lhe permitiu fazer um trabalho de tradução com música?
Marcelo Guti – Sou músico e instrutor de violino, amo a música desde criança e me considero uma pessoa eclética, pois gosto de todos os estilos musicais. Quando comecei na Libras, há cerca de 13 anos, eu me deparei somente com vídeos no YouTube de músicas brasileiras e gospel. Naquela época, mais que hoje, havia preconceito em relação ao funk, rap, sertanejo, como se fossem inferiores em relação aos outros gêneros. Isso me incomodava demais, porque privava os surdos de conhecer mais sobre a cultura ouvinte. Na época, traduzi para Libras as músicas do gênero funk Lepo Lepo e Beijinho no Ombro e os surdos adoraram, sentiram a vibração da música, entenderam o conteúdo da música. Isso só é possível se a tradução explicar do que se trata a letra da música.
Na atuação como tradutor-intérprete, fui estudando e me aprimorando cada vez mais, enriquecendo minhas experiências com um trabalho dedicado à arte, tanto no teatro e na TV quanto no ensino da Língua Brasileira de Sinais. Em meus estudos, descobri que os surdos gostavam muito de música, o que contrariou muitos intérpretes que até então acreditavam que os surdos não gostavam de música porque não conseguiam ouvir. Isso me levou a apresentar um painel em um congresso da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, com dados de uma pesquisa de campo em pleno desfile de carnaval que resultou no artigo Reflexões sobre a Musicalidade na Cultura Surda. Isso permitiu que, aos poucos, fossemos desconstruindo estigmas e senso comum.
GC – Fale de sua experiência e trabalhos anteriores:
MG – De shows sertanejos a programas de TV, como o Teleton, já interpretei casamentos, funeral, leitura de baralho cigano, consulta espiritual, em que a pessoa incorporou a entidade eu fiz a tradução, giras de umbanda em terreiro para facilitar a comunicação com os surdos, trabalho que exigiu conhecimento de palavras desse contexto religioso adaptado para Libras.
GC – Como surgiu o convite para traduzir os episódios do Festival Arrastão Cultural? Quais foram os desafios e conquistas para a realização desse trabalho? No caso do episódio com a cantora Baobá, houve músicas em Iorubá, língua de origem africana, conte como foi o processo de interpretação:
MG – O João Perreka, responsável pela produção do Arrastão Cultural, me tirou da zona de conforto ao permitir que eu fizesse a intepretação de textos e músicas que eu nunca tinha tido acesso antes, considerando que se trata do trabalho de artistas autorais, cuja maioria eu ainda não conhecia. Isso tem sido um grande desafio: é preciso ler a letra, estudar a história do artista, entender o que vem por trás daquele texto, poesia ou canção, o que o artista quis dizer com aquilo, e tudo isso foge à superficialidade e exige profundidade, porque tanto as músicas e as poesias quanto as histórias de vida de cada um tocam as pessoas. Então, eu preciso entender para causar o mesmo impacto visual e emoção para a comunidade surda, a ponto de fazê-los chorar com a interpretação. Outro fator importante foi o livre acesso aos autores, compositores, poetas e demais artistas, impossível em outros contextos de produção musical. É curioso que, muitas vezes, o próprio compositor não sabe explicar o que determinada frase quer dizer e isso me desafia profundamente. Dentre os três programas do Arrastão Cultural que já foram ao ar, o da cantora Baobá foi, sem dúvida, o mais desafiante, porque havia músicas cantadas em Iorubá e isso veio ao encontro de meus estudos sobre religiões, principalmente Umbanda e Candomblé. Mesmo com a tradução aproximada para o português, eu levei algum tempo para entender como fazer a interpretação simultânea olhando para a câmera, sem consulta ao texto, para ficar natural e primar pelas expressões faciais e a combinação gestual das canções com a apresentação dos artistas, ou seja, foram muitas as gravações e regravações e, com a ajuda de meu marido, conseguimos chegar a um excelente resultado, me emocionei bastante.
GC – Qual a diferença entre traduzir um texto falado e traduzir uma música?
MG – A interpretação de um texto falado ou escrito é mais fácil porque passa a informação do significado das palavras que estão sendo ditas, traduzidas em sinais. Quando se trata de uma poesia, é preciso ir além e a diferença está em trazer a beleza da poesia escrita e falada para a poesia sinalizada, para que o surdo possa admirar o artista tanto quanto o ouvinte. Para isso, é preciso descobrir o que o autor ou autora quis dizer com aquilo, se é uma mensagem subliminar, se é algo explicito, se é algo que pode ser entregue pronto ou se é necessário também deixar uma interrogação na cabeça do surdo, assim como acontece com os ouvintes, dependendo do texto. No caso da poesia, como um especialista em interpretação cultural, percebo a necessidade de manter as rimas das palavras, fazer os sinais combinarem uns com os outros. Essa possibilidade decorre tanto de minha experiência artística quanto da preocupação de oferecer esse diferencial. Com relação à música, o procedimento é o mesmo, eu acrescento o ritmo dançante e movimentos corporais e faciais para que o surdo entenda que se trata de uma música. O corpo mostra o ritmo, as mãos mostram as palavras e o rosto mostra o sentimento.
GC – Fica muito evidente que você se envolve com bastante paixão pela tradução em libras, deixando muito claro suas emoções. Conte como é feito esse trabalho:
MG – Sou uma pessoa apaixonada por Comunicação, Acessibilidade e Inclusão. Como músico, ator, professor, empreendedor, tradutor-intérprete e pesquisador de línguas, culturas e religiões, eu acho que tudo que aprendi foi alcançado com muita luta e dedicação para que eu pudesse quebrar barreiras e atingir determinado grau de conhecimento de mundo. Essa luta também aconteceu, principalmente, em meio à comunidade surda, na qual a grande maioria das interpretações em Libras acontecem nas igrejas, infelizmente, ainda não chegou aos terreiros de Candomblé e Umbanda. No estado de São Paulo, somente eu e outro intérprete de Libras oferecemos esse trabalho, a maioria dos intérpretes tem medo, preconceito religioso e falta de conhecimento. E foi diante de um convite de um surdo que precisava de um intérprete em um terreiro, negado por outras 20 pessoas, que me dispus a ajudar e a aprender os sinais, foi um aprendizado, uma troca que permitiu a esse surdo uma experiência única, a ponto dele chorar e se encantar com o ritual. Isso me emocionou e me marcou demais, continuei a frequentar o terreiro e a estudar a religião com um propósito maior de alcançar outros surdos.
Fazer a mensagem chegar a todos que não estão escutando
GC – Quais são as devolutivas que seu trabalho de tradução tem em meio à comunidade surda?
MG – Como em todos os lugares, há intérpretes ouvintes intolerantes, que criticam esse trabalho por preconceito. Numa ocasião, quando postei o vídeo de meu casamento com Wislley em um cerimônia feita por uma Yalorixá, uma mãe de santo do Candomblé, na praia do Farol da Barra, em Salvador, perdi de uma só vez 200 seguidores. Se por um lado perdi vários seguidores que são intérpretes de Libras e religiosos, por outro, consegui muitos seguidores surdos que estavam curiosos e desejavam aprender mais sobre o Candomblé, mas que nunca tiveram quem os ensinasse.
GC – O que você julga mais importante para um resultado satisfatório de tradução e interpretação?
MG – Para mim, o mais importante é a compreensão do texto pelo surdo, seja uma notícia, poesia ou música. Claro, se o surdo gostar da poesia ou da música, se a interpretação fizer sentido para ele, isso é ainda mais satisfatório. Mas o plus mesmo é quando o surdo se emociona, isso para mim não tem preço, quando vejo o surdo chorar, entendo que o trabalho alcançou seu auge.
GC – Qual conselho você pode dar para aqueles que desejam iniciar nessa profissão?
MG – O papel do intérprete de Libras é fazer a mensagem chegar a todos que não estão escutando. Primeiro, esvazie-se de tudo que você aprendeu e conhece na vida para se abrir a um novo universo de infinitas possibilidades. Segundo, prepare-se para estudar enquanto viver, pois o intérprete tem que ter conhecimento amplo e diversificado, independente de suas crenças, ideologias, opiniões e preferências partidárias. Além disso, o tradutor-intérprete profissional tem que seguir o código de ética da profissão e saber que, enquanto estiver atuando, ele não deve emitir sua opinião, concordar ou não, o que importa é fazer a tradução do modo como o texto está sendo dito, e cabe ao surdo enquanto cidadão e pessoa pensante, julgar a interpretação, pois ele sabe que seu papel é interpretar. Quem opta por essa profissão deve se despir de toda intolerância e estar preparado para garantir o direito do surdo à informação. O intérprete de Libras é como um microfone, ele não tem vida própria no momento da atuação, ele tem que passar exatamente a mensagem anunciada aos ouvintes. Se o microfone é usado para falar qualquer besteira ou absurdo, a culpa é de quem fala e não do microfone, que é usado somente para fazer chegar a mensagem em todos os alto-falantes.
GC – No seu ponto de vista, qual a importância de se realizar um festival como o Arrastão Cultural oferecendo a possibilidade de que ele possa ser visto por mais pessoas?
MG – O Arrastão Cultural vem quebrando vários paradigmas e dando visibilidade a artistas, muitas vezes marginalizados e ignorados pela sociedade. Isso é fantástico, maravilhoso, super me identifiquei com a proposta e todos os artistas. É um espaço único, diferente, especial, sem o qual, talvez, esses artistas não teriam a mesma oportunidade de mostrar seu trabalho, é isso é mágico. Fazer esse trabalho chegar a todas as pessoas, e também aos surdos, é algo impagável, um privilégio poder participar.
GC – Conte-nos como é feito o trabalho no Instituto Mãos que Cantam:
MG – Temos uma equipe de tradutores-intérpretes formada por profissionais dedicados ao atendimento de empresas de vários portes. Eu sou o coordenador da equipe e costumo delegar aos demais profissionais os trabalhos para os quais somos contratados. No caso do Arrastão Cultural, fiz questão de bloquear toda a minha agenda para poder atender essa demanda e me dedicar integralmente ao festival. Entendo que, para esse trabalho de interpretação, era necessário estar aberto, se entregar e ter um perfil sensível.
O Instituto Mãos que Cantam também faz um programa social com pessoas trans. Em todas as turmas de Libras, concedemos uma bolsa integral para pessoas trans que desejam aprender Libras, interessadas em fazer o curso, mas que não têm condições, possam estudar no Instituto e, assim, se profissionalizar, melhorando sua colocação no mercado de trabalho e ajudando a dar visibilidade às causas que defendemos.
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Marcelo Guti é especialista em Tradução e Interpretação Libras/Português, especialista em Libras e Educação de Surdos. Ele também é CEO e co-fundador do Instituto Mãos Que Cantam, escola de Libras com cursos online e presencial, que além da unidade localizada no Jardim Bom Clima, em Guarulhos, possui dois outros polos em São Paulo, no metrô Paraíso e no Tucuruvi.
Em 2019, Marcelo foi homenageado com a Medalha Tiradentes. Recebeu em outubro de 2017 o Prêmio Rehaforte como referência na área de Acessibilidade e Inclusão, votado por mais de 1.600 pessoas físicas e jurídicas, na Feira Internacional de Tecnologias e Empregabilidade para Pessoas com Deficiência Rehafair 2017. Em 2018, recebeu prêmio de melhores parceiros da Acessibilidade e Inclusão pela Pró Trabalhador de São Paulo.
Para conhecer mais sobre o trabalho que Marcelo faz, acompanhe-o no Instagram @marcelogutilibras. O Instituto Mãos Que Cantam também tem um perfil no Instagram @maosquecantam.
Em Guarulhos, o Instituto Mãos que Cantam fica na Rua Mandaguari 115, no Jardim Bom Clima. Para mais informações sobre os cursos oferecidos acesse napontadosdedos.eadbox.com. Também é possível obter informações por telefone e WhatsApp nos números (11) 95148-0926 ou (11) 98579-1580 ou por e-mail institutomaosquecantam@hotmail.com.