Muitos Carnavais: documentário revela as memórias de uma das mais tradicionais manifestações da cultura popular em Guarulhos
A pandemia da Covid-19 impediu a realização de uma das mais tradicionais manifestações da cultura popular de todo o país: o carnaval. Em Guarulhos, as memórias, as alegrias, os desafios e as conquistas, as trajetórias de músicos, artistas, realizadores e carnavalescos foram reunidas na série-documentário Muitos Carnavais, produção e direção dos guarulhenses Daniel Neves e Diego Andrade que revela a riqueza dessa festa, sobre a qual poucos sabem.
A ideia surgiu da necessidade de manter acesa essa chama festiva e de difundir uma história que já conta com quase 50 anos de tradição. Araci Borges, responsável pelo Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos, desenvolveu um roteiro especial ao convidar figuras emblemáticas, personagens cativas que revisitaram suas memórias mais felizes para vivenciar momentos marcantes, inesquecíveis.
Com o samba estampado no sorriso e no jeito de contar as histórias, Cidinha do Samba está entre os entrevistados. Cidinha é herdeira da sambista Babá Teresa, que foi fundadora da Império de Guarulhos, primeira escola de samba da cidade.
Os tradicionais blocos carnavalescos, que se tornaram febre nos últimos anos e que tomam a cidade do começo ao fim do carnaval, estão representados por Ricardo de Sá, músico do Bloco dos Fanfarrões e membro da Uniblocos, entidade que reúne ONGs, associações e grupos artísticos dedicados ao carnaval de rua em Guarulhos.
Na ala dos compositores, o sambista Dario Neto faz coro com sambas-enredo premiados de várias agremiações da cidade. De acordo com Araci Borges, que elaborou o roteiro das entrevistas, a diversidade é uma das marcas do carnaval no Brasil, elemento que garante que a beleza dessa festa popular.
“A diversidade bate forte no tambor do Brasil, o carnaval e o espaço da confraternização, em que a rotina é suspensa ao permitir a quebra de hierarquias e a visão utópica de várias formas de vida. No carnaval, todos se divertem, cada um ao seu modo, numa incrível proliferação de bailes e desfiles. Essa é a nossa beleza, por isso, precisamos preservá-la”, vibra Araci.
“O carnaval é minha vida” – Cidinha do Samba
Cheia de orgulho por poder representar sua mãe, Cidinha do Samba conta que, em 1973, Babá Teresa, a primeira dama do samba em Guarulhos, fundou a escola-de-samba Império de Guarulhos. Babá Teresa nasceu nos anos 30, no berço do samba paulistano, no bairro do Bixiga. Foi sua relação com a Vai Vai e por meio de valiosas parcerias, dentre as quais com Jace, Patente, Telasco, Tia Teco, que fez fortalecer o desejo de criar uma escola em Guarulhos.
“Lembro que o primeiro desfile de escola de samba que aconteceu em Guarulhos foi ao redor da Praça Getúlio Vargas. Era uma escola completa, com comissão de frente, ala das baianas, a ala das passistas, da qual eu fazia parte, e que se chamava La Tira Gosto”, conta Cidinha, divertindo-se ao lembrar que, com o passar dos anos, o desfile passou a descer a Rua Capitão Gabriel em direção à Rua Dom Pedro.
Cidinha conta que o ideal da escola de samba sempre foi tirar as crianças da rua. Naquela época, a Império de Guarulhos tinha forte atuação na área social, oferendo aulas de capoeira e futebol. “A escola de samba é um sonho, que precisa de apoio do poder público para continuar existindo e cumprindo seu papel de ajudar adolescentes, idosos, gerando empregos, e levar alegria para todos”.
Além do trabalho social, Cidinha fala ainda sobre a importância da produção carnavalesca, que emprega costureiras, marceneiros, artistas profissionais, pessoas que estão engajadas e empenhadas em fazer dessa festa um evento grandioso.
“Foi um pedido de minha mãe, não deixe minha escola morrer, não deixe baixar o pavilhão, enquanto houver um tamborim batendo, um tantã, um surdo, enquanto houver um coração batendo, o samba não vai morrer”.
“A Vila é amor e poesia e hoje vem mostrar toda arte e cultura através dos orixás. Na vila tem batuque, tem mulatas, tem candomblé nos terreiros, tem pandeiro e tamborim e lá na Vila o povo canta assim, oh iaia de ioiô, sou Caprichosos, eu sou raízes eu sou amor, oiaia de ioiô, abra o caminho para a festa Nagô” – Dario Neto
Entre trechos de canções e memórias divertidas, as histórias do sambista Dario Neto revelam que sua relação com a música começou em tenra idade. Foi sua quem despertou o gosto do menino de apenas dois anos pela música, quando a ouvia cantarolar canções enquanto ela lavava a roupa.
O bate-papo nos leva para outros tempos, para uma época em que a tradição do carnaval em Guarulhos movimentava artistas e compositores, que viviam intensamente o samba na cidade, tanto nas rodas como nos encontros das escolas de samba.
“Naquela época, eu conheci o fotógrafo, o Gilson Ferreira, quando ele fazia umas matérias sobre o Intervalo Cultural para o Jornal Olho Vivo. Eu já tinha muita vontade de compor um samba-enredo e foi ele quem me levou para participar de um concurso na Escola Independência Bom Clima, onde ele me apresentou o Jáu. Foi assim que eu pude escrever meu primeiro samba-enredo, participei do concurso com a rapaziada e meu samba foi escolhido para representar a escola na avenida”, conta Dario, orgulhoso.
Dario é responsável por sambas-enredo de escolas como Independência Bom Clima, Caprichosos da Vila, Vai quem Fica, e participou da fundação do Bloco Saudosa, que depois tornou-se uma escola de samba.
“O maior carnaval de marchinhas de Guarulhos” – Ricardo Sá
Músico profissional, Ricardo Sá é trombonista, toca desde as saudosas marchinhas de carnaval no Bloco Os Fanfarrões ao sons mais pesados do pop rock. A ideia de fomentar os blocos de rua na cidade surgiu da necessidade de difundir esses encontros culturais para diferentes regiões, do centro à periferia. O que em 2014 começou com uma reunião de amigos em um bar no Parque Santo Antônio, logo se tornou o primeiro de muitos encontros e deu origem ao Bloco dos Fanfarrões, grupo que dedica sua folia às saudosas e tradicionais marchinhas de carnaval, tão adoradas por todos.
“Além de reunir e agregar pessoas, nosso desejo é que as novas gerações também possam conhecer as marchinhas tradicionais e integrar os jovens e os adultos”.
Ricardo Sá explica que o Bloco dos Fanfarrões é um bloco de cortejo, o que equivale a dizer que eles se reúnem em um ponto da cidade, onde é feito um aquecimento, com muita música e diversão, e que logo depois desse aquecimento, eles saem percorrendo as ruas do centro da cidade. “O bloco de rua é um espaço aberto, uma alegria para quem participa. O folião pode chegar e aproveitar a diversão, conhecer um pouco da história e da cultura da cidade”, vibra Ricardo.
Com o passar do tempo, os integrantes do bloco descobriram com grande satisfação que havia outros blocos de rua na cidade, que no período de carnaval circulavam por outras regiões. Isso motivou Ricardo e seu irmão Cristiano de Sá a criar, em 2017, a Uniblocos, uma associação para integrar e organizar os blocos de rua da cidade.
A organização e divulgação das datas de saída dos blocos de rua em Guarulhos permite que o folião possa aproveitar a festa em sua própria cidade, além de conhecer e aproveitar os eventos na cidade como um todo, cada semana em uma região diferente.
Fale da sua aldeia e você estará falando de todo mundo
Muitos Carnavais é realizado em um momento em que o carnaval no país foi cancelado por conta da pandemia. De acordo com o produtor Daniel Neves, do coletivo Companhia Bueiro Aberto, ainda assim, falar sobre o tema promove um olhar problematizador sobre o evento carnavalesco a partir da ótica da falta de recursos e investimentos, dos desfiles que já não acontecem há anos, da questão dos blocos e dos compositores. “Há urgência em fazer esse produto audiovisual chegar até as pessoas, para que a Cultura possa resistir, para ajudar esses grupos a se manterem e para que gente possa, em um futuro não tão distante, ver a retomada dos desfiles na cidade, a geração de emprego, o encontro das pessoas, a difusão da cultura popular”, enfatiza Daniel.
Diego Andrade, produtor audiovisual nos coletivos Companhia Bueiro Aberto e Vidióla Audiovisual e Publicidade, conta que a produção do conteúdo permitiu que ele experimentasse algumas descobertas. “A série de entrevistas com pessoas representativas do carnaval em Guarulhos revela a riqueza de histórias que são muito mais antigas do que podíamos imaginar e que serão contadas sob o ponto de vista das relações que começaram nas comunidades, nos bairros, e que ganharam a cidade como um todo em inúmeras manifestações carnavalescas. Por isso, dar evidência a essas histórias torna-se fundamental para que mais pessoas possam conhecê-las e valorizá-las”, explica Diego Andrade.
Sobre a importância da série para a memória e registro do carnaval em Guarulhos, Daniel Neves pontua que a celebração também revela características que lhes são próprias, como o modo de desfilar, sua origem nas ruas da cidade, os sambas-enredo que contam as histórias dos bairros, o que, segundo o produtor, reforça a necessidade de divulgação com vistas à sua continuidade.
“A perspectiva do documentário é adentrar a especificidade da região onde vivemos, desbravando a cidade e evidenciando sua riqueza cultural, histórica e popular, permitindo que as histórias sejam conhecidas e difundidas para toda a população”, observa Neves.
Ficha técnica
Produção e Direção – Araci Borges, Diego Andrade e Daniel Neves
Montagem – Daniel Neves
Roteiro – Araci Borges
Fotografia e Edição – Daniel Neves e Diego Andrade
Imagens fotos
Prefeitura de Guarulhos – Arquivo Histórico Municipal
Vídeos carnavais antigos – Lumiar Multimidia